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O direito de viver a própria morte

Ana Lúcia Amorim Boaventura

Publicado no jornal O Popular em 29 de Janeiro de 2012

Passamos toda nossa existência tomando decisões sobre o que é melhor ou pior para nossas vidas e quase nunca pensamos em quais condições iremos morrer. Falar sobre a morte não é nada fácil.  Apesar de sermos um país juridicamente laico, somos extremamente religiosos e tal assunto requer um pensamento voltado a nossa finitude. O CFM, através da Resolução 1.995/2012 publicada no DOU no último dia 31 de agosto, traz à baila tal assunto buscando oferecer aos pacientes a regulamentação ética da morte digna.



Morte digna não fala em distanásia e nem ao menos em eutanásia. Fala em ortotanásia. Fala em morte na hora certa, dentro de seu processo natural, longe de práticas terapêuticas dolorosas, obstinadas e desnecessárias.


A Resolução do CFM fala em casos de terminalidade de vida, quando a Medicina já não tem nada a fazer para curar o paciente. Ela não fala em abreviar a vida, mas sim aceitar a morte. Dá a opção para o enfermo rechaçar algo que lhe traz angústia, sofrimento físico e psíquico sem nenhum benefício significativo, senão a vida fisiológica  mantida através de mecanização.



Isso me faz lembrar o filme “Uma prova de amor” em que a personagem principal, acometida de leucemia, passa todo o enredo buscando livrar-se do tratamento imposto pela família. Ela quer simplesmente viver os poucos dias que lhe restam como qualquer outra adolescente de sua idade e não mais ficar presa em um hospital sem qualquer chance de evolução para seu quadro clínico.

Apesar da menção ao filme, ressalto que a Resolução abre espaço para o Testamento Vital somente a pessoas maiores de 18 anos e em pleno gozo de suas faculdades mentais.



A morte digna respeita três princípios basilares: a vida, a autonomia da vontade e a dignidade humana. Reconhece a morte como ponto de chegada de todo um processo biológico e natural do ser humano. Reconhece que a vida não existe sem o nascer e o morrer.



O CFM, através do Testamento Vital, afasta definitivamente a visão hipocrática de tratamento em que não se considera a opinião do paciente. Este documento faz valer a vontade previamente manifestada quando já não se pode mais expressá-la. Ele abre o debate gerando diálogo entre médico, paciente e familiares podendo se discutir em conjunto, expor as vontades e registrar o momento certo de parar, de ceder à morte, que chega naturalmente.



Sob o ponto de vista jurídico, muitas críticas estão sendo feitas ao CFM no sentido de atuar fora de suas competências e estar legislando. Ora, a Lei 3.268/57, que cria esta autarquia, lhe dá atribuições para fiscalizar e disciplinar a classe médica em todo território nacional. As Resoluções do CFM e dos CRMs têm força interna corpuris e no caso em tela, dá o dever ético, e não legal, ao médico, de respeito às últimas vontades do paciente através do Testamento Vital sempre que este documento não fira o Código de Ética Médica. Além disso, o artigo 15 do Código Civil diz que “Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.”



A Resolução em comento valoriza o ser humano até seu último suspiro, a exemplo de países como os Estados Unidos, Argentina, Espanha, Uruguai e Portugal, que têm leis em sentido estrito específicas para o caso.



Porém, penso que ela é frágil diante de um assunto tão polêmico, uma vez que não aprofunda o assunto, deixando em aberto a forma em que deve se apresentar o Testamento Vital e não discorre com maiores detalhes sobre seus limites, por exemplo, até mesmo em respaldo ao médico. Pormenores sobre o assunto deverão vir previstos em lei, como a criação de um registro ou cadastro nacional de Testamentos Vitais, como em Portugal, caso se faça necessário.



Após o Consentimento Livre e Esclarecido o Testamento Vital era, necessariamente, o próximo passo. Respeitar o direito de viver a própria morte é viver a vida plenamente.



Citando Pablo Neruda: “A morte não é a maior perda da vida. A maior perda é o que morre dentro de nós enquanto vivemos”.



A foto que ilustra este artigo é de Daniel Pedrogam, publicada originalmente na galeria pública http://olhares.uol.com.br/morrer-com-dignidade-foto3211740.html.

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