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O Estado e a Mistanásia

Ana Lúcia Amorim Boaventura

Publicado no jornal O Popular em 26 de Maio de 2016.

Mistanásia (do grego, mis, miserável; e thanatos, morte) pode ser conceituada com a morte miserável, fora do tempo, abandonada, um retrato da falta de respeito ao princípio da dignidade de pessoa humana. Refere-se às mortes de pessoas deixadas à própria sorte, em favelas, periferias, sobretudo em corredores de hospitais lotados com insatisfatória assistência médico-hospitalar ou sem nenhuma.


A mistanásia, segundo Leonard Martin, deve ser vista como um fenômeno da maldade humana. Não como algo premeditado para se fazer o mal, mas a falta de planejamento para a promoção do bem. E se o assunto é falta de planejamento, o Executivo brasileiro é expert nisso. Em saúde nem se fala.


O termo não se confunde com eutanásia ou ortotanásia. O primeiro, ocorre quando o indivíduo tem o desejo de dar fim à sua própria vida por motivo de doença incurável, por exemplo. Já o segundo é a morte sem sofrimento, em seu momento certo, inerente à própria finitude da existência humana.


Em países como o Brasil, que ensaia ser um Estado Democrático de Direito, estar doente não é nem de longe sinônimo de ser paciente. Ser deixado à mingua nos postos de saúde à espera de vagas de UTI, de consultas, de remédios e exames, em muitos casos, significa um incentivo à morte precoce. As vítimas da mistanásia são pessoas enfermas em situação de carência, de exclusão econômica e social, que não conseguiram ingressar no sistema público ou particular de atendimento médico-hospitalar, e quando há a sorte de ingresso, têm suas vidas ceifadas em razão de atendimento desqualificado e precário.


Diante do cenário de políticas públicas malsucedidas, ineficácia das leis, dificuldade de acesso ao Poder Judiciário, do câncer da corrupção e de medidas populistas em saúde, estamos em um ambiente social onde impera o desrespeito ao ser humano num momento de total fragilidade, terreno fértil à prática diária de mistanásia por parte do Estado.


Há crueldade na prática da mistanásia. Dor, pobreza, descaso e morte se misturam, nos colocando diante de um Estado que mata por ser negligente e omisso. Que atua distante das leis que tutelam o direito à saúde. Tal realidade não é novidade para nenhum de nós. Tem cadeira cativa nas manchetes de jornais. Todos padecem, inclusive os profissionais da saúde que trabalham sem suporte para atendimento.


Pena que a letra fria da Constituição Cidadã não garanta a construção de hospitais, o aumento de vagas de UTI, o fornecimento tempestivo de medicamentos, enfim, a formação de cidadãos que gozem plenamente da palavra dignidade. Para tanto nos falta algo maior. Algo que vai além dos muros das faculdades, dos hospitais, das igrejas e do Congresso Nacional. Algo que se relaciona com caráter e que se chama respeito. Isso se aprende desde pequeno. Vem de berço. E por falar em berço, desde 1988 o Brasil se apresenta ao mundo como um Estado Democrático de Direito, mas que mata por omissão os seus. Quanta incoerência! Brasil, saia do berço esplêndido! Quantos ainda morrerão pelas suas mãos?


*Ana Lúcia Amorim Boaventura é advogada especialista em Direito Médico, Direito Odontológico e Direito da Saúde, Presidente da Comissão de Direito Médico, Sanitário e Defesa da Saúde da OAB Goiás, Secretária-Geral da CASAG e Professora da Faculdade de Medicina da PUC Goiás.

 

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