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Sigilo profissional médico em casos de violência doméstica contra menores

Ana Lúcia Amorim Boaventura

Publicado no jornal Diário da Manhã e na revista do Medicina em Goiás
 

Ninguém contesta que a relação médico-paciente ideal deve pautar-se num grau de confiança elevado. O sigilo profissional médico busca essencialmente a proteção da intimidade e integridade do paciente. É algo necessariamente vinculado a uma obrigação moral implícita do médico para com o doente. Este dever existe para que não se estremeça esta relação de confiança tão necessária para uma boa anamnese. Porém, destacamos os casos de atendimentos médicos a crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica, em que os pais ou responsáveis são, geralmente, ao mesmo tempo, os acompanhantes e os agressores.
 

O médico, e em especial o pediatra, deve posicionar-se de modo ativo na busca da saúde e bem-estar de seus pequenos pacientes. Isso não se limita aos corredores de hospitais, nem tampouco somente às salas de consultórios. Seu papel na sociedade vai além. Tal sigilo profissional não é absoluto e, em casos de violência doméstica contra crianças e adolescentes, deve ser relativizado. O Ministério da Saúde considera a violência de pais ou responsáveis a crianças e adolescentes um problema de saúde pública.
 

A violência doméstica é “aquela praticada através de atos e/ou omissões de pais, parentes ou responsável em relação à criança e/ou adolescente que sendo capaz de causar à vítima dor ou dano de natureza física, sexual e/ou psicológica implica, de um lado, numa transgressão do poder/dever de proteção do adulto e, de outro, numa coisificação da infância. Isto é, numa negação do direito que crianças e adolescentes têm de ser tratados como sujeitos e pessoas em condição peculiar de desenvolvimento”. Fonte: AZEVEDO, M. A. & GUERRA, V. N. A. Violência Doméstica na Infância e na Adolescência. SP: Robe, 1995.
 

Os médicos, em geral, preferem não se envolver em assuntos de âmbito familiar, o que é compreensível. Porém, ao falarmos de agressões contra menores, terão que ativamente posicionar-se em favor do paciente, ou seja, da vítima. Muitas vezes não o fazem por não conhecerem a lei. Informamos que este é um dever legal e o Código de Ética Médica os respalda.
 

Vejamos o artigo 73 do Código de Ética Médica: “É vedado ao médico revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento por escrito do paciente”. (grifo nosso) Ora, notadamente, qualquer tipo de violência contra menores configura motivo justo para o rompimento do sigilo. Agrava-se este quadro, se a vítima é agredida por seus pais ou responsáveis. Em torno dessa lamentável realidade familiar, é provável que irmãos desse paciente agredido possam também ser vítimas de maus-tratos. 

Logo, a quebra do segredo profissional poderá ainda levar proteção a terceiros não envolvidos no atendimento médico. Além disso, o médico tem o dever legal de comunicar à autoridade competente casos de que tenha conhecimento de maus tratos contra menores. É a letra do artigo 245, da Lei 8.069/90, popularmente conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA: “Deixar o médico, professor ou responsável por estabelecimento de atenção à saúde e de ensino fundamental, pré-escola ou creche, de comunicar à autoridade competente os casos de que tenha conhecimento, envolvendo suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente: Pena - multa de três a vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência”. (grifo nosso) Notem que o legislador, no afã de proteger o menor, pune a falta de comunicação mesmo em casos de suspeita e penaliza em dobro a reincidência dessa omissão. E não poderia ser diferente. Em certas situações, são os professores e médicos que estão mais próximos das crianças e adolescentes e, não raramente, dão atenção e orientação que estas vítimas não recebem em casa.
 

Sensível a este fundamental papel do médico, o Código de Ética, em seu artigo 74, estabelece: “É vedado ao médico, revelar sigilo profissional relacionado a paciente menor de idade, inclusive a seus pais ou representantes legais, desde que o menor tenha capacidade de discernimento, salvo quando a não revelação possa acarretar dano ao paciente”. (grifo nosso)
 

Percebam que novamente o Código se preocupou com o paciente, colocando seus interesses em primeiro lugar. Além disso, dá espaço para que o profissional estreite suas relações com este paciente, comumente adolescente, no intuito de orientá-lo. Entretanto, ressaltamos que este paciente deve ter capacidade de discernimento e aconselhamos um detalhado registro no prontuário clínico. Assim, a comunicação ao Conselho Tutelar ou ao Juizado de Infância e Juventude é um dever. Os atendimentos no SUS deverão obedecer a Portaria 1968/2001 do Ministério da Saúde, que solicita o preenchimento de um formulário. Há ainda a Portaria 737/2001 do Ministério da Saúde que trata da Política Nacional de Redução de Morbimortalidade por Acidentes e Violências. As minúcias do atendimento devem, portanto, ser exaustivamente relatadas no prontuário. Tal documento poderá ser usado como prova em denúncias em desfavor do agressor, facilitando assim o trabalho dos juízes e do Ministério Público em prol de uma sociedade menos violenta.
 

A Sociedade Brasileira de Pediatria também promove campanha de prevenção da violência contra criança e adolescente e divulga em seu site dados alarmantes relacionados a este covarde crime. Não há como ficarmos inertes. As vítimas de hoje são os agressores de um futuro muito próximo e isso não pode ser encarado como
mais um jargão. Vale refletirmos sobre a frase do filósofo Leonardo Boff: “Cuidar é mais que um ato; é uma atitude. Portanto, abrange mais que um momento de atenção, de zelo, e de desvelo. Representa uma atitude de ocupação, de preocupação, de responsabilização e de envolvimento afetivo com o outro”.

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